quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

E ainda que as janelas se fechem, é certo que amanhece.




Vida da minha alma:
Recaminhei casas e paisagens
Buscando-me a mim, minha a tua cara.
Recaminhei os escombros da tarde
Folhas enegrecidas, gomos cascas
Papéis da terra e tinta sob as árvores
Nichos onde nos confessamos, praças.
Revi os cães. Não os mesmos. Outros
De igual destino, loucos, tristes,
Nós dois, meu ódio-amor, atravessando
Cinzas e paredões, o percurso da vida.
Busquei a luz e o amor. Humana, atenta
Como quem busca a boca nos confins da sede
Recaminhei as nossas construções, tijolos
Pás, a areia dos dias
.
E tudo que encontrei te digo agora:
Um outro alguém sem cara. Tosco. Cego.
O arquiteto dessas armadilhas.
(Hilda Hilst, 4 de outubro de 1993)


segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Procrastinado


Em meio a um tema singular em pauta, O LUXO, pessoas discursavam sobre seus desejos, a posse, de um celular ou um carro, poderia ser uma casa na praia ou uma roupa de grife; já em outro patamar, alguns tinham anseios de novas experiências, uma faculdade, um curso ou uma viajem, para os mais esclarecidos, os que já alcançaram certo sucesso, o luxo era o silêncio, em alguma situação de se permitir sentir a vida encontrando assim um pouco de paz. Fiquei então pensando, qual seria o meu luxo, um bem que desejo, os lugares que anseio conhecer, um tempo e espaço só meu? "Somente buscamos o prazer quando sua ausência nos causa sofrimento." (Epicuro 341 - 270 a.c.) Por mais altruista ou hipócrita que possa parecer, meu prazer mais escasso, o item de luxo é a justiça. Que só atente aos que podem pagar por ela.
.

Satisfeitos os anseios de vislumbre das luxúrias, novo tema foi proposto, estava em pauta a seguinte pergunta: Qual o grande mal que nos assola? Uns assossiavam a crueldade com a mesquinharia, a outros o culto da futilidade e ignorância, propuseram o desrespeito individual, mas então, não sei como nunca havia percebido, aquele que vislumbrei como o mais sórdido dentre os outros, a complacência. A fonte geradora, a permissividade vil a todas as barbáries que nos cercam, permanecer passivo ante as maiores crueldades e injustiças. Assimilamos. Descartamos. Esquecemos então as inúmeras agressões que recebemos todos os dias, elas estão nas grades das minhas janelas, na angústia do semáforo fechado, no amargo do político corrupto perdoado, esta no culto ao jeitinho de ser mais esperto. O Estado moderno nos imergiu no universo de Kafka, onde a dificuldade na burocracia se perde na preguiça de uma concretude, tornando o nosso mundo num fantasmagórico "ser porque assim o é" nos assombrando sem que nada lógico o justifique, a não ser a nossa própria perfídia, a imunda complacência.